Deus me inventou pra desespero do diabo

Eu fiz do samba Catedral do Inferno

Louca, muito louca, endoidecida

Vou fazendo desta vida

Tudo aquilo que bem quero

Louca, muito louca, endoidecida

Vou fazendo desta vida

Tudo aquilo que bem quero

Cartola/Hermínio Bello de Carvalho

A trajetória de Marlene, cantora e atriz, representa a síntese do cenário cultural brasileiro de meados do século XX. Como apontou Ronaldo Conde Aguiar, em seu livro sobre as divas da Rádio Nacional, a história da artista coincide com a história de uma época: começou a carreira nos cassinos, passou pelo teatro de revista e pelas boates e se consagrou na famosa emissora carioca. Fez teatro e cinema. “Enfrentou o mundo, o medo e o preconceito. O balanço, contudo, lhe é favorável: foi uma estrela de primeira grandeza” (p.132).

Vitória de Martino Bonnaiutti era o nome verdadeiro de Marlene (São Paulo, 24 de novembro de 1922 – Rio de Janeiro, 13 de junho de 2014). Lançou mão da designação artística como homenagem à atriz alemã Marlene Dietrich e também para esconder da mãe sua incipiente atuação no rádio paulistano. Figurou como uma das principais vozes das acirradas disputas promovidas pela Rádio Nacional, entre as décadas de 1940 e 1950. Ao lado da eterna rival Emilinha Borba, mobilizou paixões de fãs por todo o país ao som de marchinhas e de sambas-canção. Reconhecida como uma intérprete de notável potência cênica e apurada técnica vocal, precisou se reinventar quando a mídia que a alçou ao estrelato em nível nacional entrou em declínio. Chegava ao fim, nos anos 1960, a “Era de Ouro” do rádio no Brasil, como ficou conhecido o seu período de apogeu.

O show “Te Pego Pela Palavra”, que ocupou os palcos de 1974 a 1978, é considerado o ápice dessa reinvenção, segundo o jornalista Mauro Ferreira. O espetáculo foi dirigido e roteirizado por Hermínio Bello de Carvalho e deu origem, ainda em 1974, ao álbum de mesmo título. Ele registra a atuação de uma cantora veterana, versátil, que demonstra grande habilidade em desfilar toda sua experiência e sensibilidade musical, ao mesmo tempo em que se manteve permeável às novidades da época. Os versos da canção Catedral do Inferno, de Cartola e de Hermínio Bello de Carvalho, que iniciam esta apresentação – e que encerram o disco – exprimem a grandeza e a importância de Marlene para a música e para a sociedade brasileira: a loucura de ser uma mulher livre, destemida e muito, muito talentosa.

Referências:

Aguiar, Ronaldo Conde. As divas do rádio nacional. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010.

Calabre, Lia. A Era do Rádio. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

Ferreira, Mauro. “Marlene ainda te pega pela palavra e pela musicalidade de disco de 1974”. Blog Notas Musicais. Disponível em: http://www.blognotasmusicais.com.br/2012/08/marlene-ainda-te-pega-pela-palavra-e.html Acesso em 28 dez. 2022.

Ferreira, Mauro. “Marlene, cantora que faria 100 anos hoje, vive na memória da era do rádio e dos shows teatrais”. G1. Pop & Arte. Blog do Mauro Ferreira. 24/11/2022. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2022/11/24/marlene-cantora-que-faria-100-anos-hoje-vive-na-memoria-da-era-do-radio-e-dos-shows-teatrais.ghtml Acesso em 28 dez. 2022.