Entre uma colherada e outra num delicioso escondidinho de legumes, o papo do almoço com o ator Carlos Gregório envereda, em certo momento, para um artigo sobre a peça Aurora da minha vida, texto de memórias escolares escrito por Naum Alves de Souza com uma visão crítica e carinhosa dos efeitos da fase de formação sobre os brasileiros que alguma vez ocuparam os bancos da escola.
– Encontrei a crítica que você me falou lá no Cedoc da Funarte, contei.
– A do Michalski?
– Sim.
– E ajudou?
Respondo que muito e saio a enumerar uma série de informações que consegui sobre a montagem carioca:
A estreia aconteceu no dia 19 de agosto de 1982 no Teatro de Arena.
Além do texto, Naum assinou a direção e o cenário do espetáculo.
Os figurinos eram de Leda Senise.
No elenco, estavam Analu Prestes, Marieta Severo, Mário Borges, Pedro Paulo Rangel, Stella Freitas, Cidinha Milan, Roberto Arduin e Carlos Gregório.
Sim, caro leitor, meu companheiro de almoço atuou na peça. Interpretou o Quieto, que, segundo Yan Michalski, tem um perfil autoritário e autocontrolado, porque leva para a sala de aula os valores que lhe são impostos por seu pai militar. Já a Adiantada, interpretada por Marieta Severo, é metida à besta, esnobe e boa aluna, porque seu pai, gerente de banco, tem condições de pagar aulas particulares para a filha.
Os outros personagens da peça são o Diretor, o Padre, o Professor de inglês, o Professor de desenho, o Órfão, a Gorda, o Bobo, o Puxa e as Gêmeas. Ninguém é designado por um nome próprio. Na hierarquia escolar, os nomes vêm das funções desempenhadas e, entre os alunos, a nomeação se dá por meio de termos qualificativos. Mas se engana quem pensa que Naum apenas colocou o público diante de tipos. Para Michalski, ao longo do espetáculo, cada figura adquire, para além da função ou da qualidade que a nomeia, contornos psicológicos que a individualiza.
E esses dramas de cada um, na opinião do crítico, amarram-se num único conflito maior: “A dura necessidade de lutar para sobreviver, de lutar contra as pressões do establishment. Competir com os colegas, resistir (com maldade, se for o caso) à maldade que nos ameaça constantemente por todos os lados”, escreveu Michalski depois de assistir a um ensaio da peça.
Nessa crítica publicada numa página inteira do Jornal do Brasil um dia antes da estreia do espetáculo no Rio de Janeiro, Michalski destaca não só aspectos da peça, mas também o comportamento de Naum: “Silencioso e calmo, assiste ao ensaio sem se manifestar uma só vez”. Em outro trecho, diz que a fala mansa é uma marca da personalidade do diretor e, em seguida, dá voz no texto a Naum que comenta sobre o efeito quase mágico que as carteiras escolares do cenário exerciam sobre o público de São Paulo, onde a obra foi montada originalmente, no ano de 1981, permanecendo 11 meses.
A crítica à montagem paulistana foi escrita por Sábato Magaldi para o Jornal da Tarde. Também disponível no Centro de Documentação da Funarte, o texto de Magaldi, assim como o de Michalski, traz uma avaliação bastante positiva. Na montagem paulistana, que estreou no Teatro Bexiga, Sábato viu se confirmarem as mesmas qualidades que Naum já havia apresentado em 1979 com o texto No Natal a gente vem te buscar, peça que forma uma trilogia juntamente com Aurora e Um beijo, um abraço e um aperto de mão (1984).
Sobre as atuações e a direção, Magaldi declarou: “Os oito atores, que vivem os alunos e eventualmente se travestem num professor, conseguem a expressão da infância e do início da adolescência, sem ficarem infantis ou aparvalhados. Eliane Giardini sintetiza muito bem o universo da Adiantada. Paulo Betti faz uma pungente composição do Bobo. J.C. Viola imprime energia interior tanto ao Quieto como ao Professor de Matemática. Maria do Carmo Sodré não parece estreante. Isa Kopelman, Cristina Pereira, Dionísio Jacob e Roberto Arduim encarnam também com acerto as especificidades de suas personagens”.
Por fim, Sábato Magaldi profetizou: “Pelos numerosos valores, Aurora da Minha Vida se destina uma vitoriosa carreira”. E não é que ele tinha razão? Desde sua estreia em São Paulo, o espetáculo foi montado por grupos e companhias de teatro importantes de todo país. No dia 23 de maio de 2016, 25 anos após a estreia da peça e pouco mais de um mês depois da morte de Naum Alves de Souza, atores e atrizes que integraram montagens do espetáculo fizeram um tributo ao diretor. Carlos Gregório, claro, estava lá.
– Foi emocionante, ele diz.
– É como dizia o poema “ Meus oito anos” do Casemiro de Abreu, meu amigo.
– Oh! que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais!
Chega a conta. Fim de papo.
Cláudio Felicio
Doutor em Letras e Mestre em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Cláudio Felicio é roteirista formado pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro com vasta experiência no mercado audiovisual. É servidor da Funarte desde 2006 e atualmente está lotado no Cedoc, trabalhando na difusão do acervo. Na instituição, atuou como roteirista do Estúdio F, programa de rádio sobre compositores e intérpretes brasileiros. Também escreveu o roteiro e foi o responsável pela pesquisa de imagens do curta-documentário “Dulcina Atriz e Teatro”, entre outros trabalhos. É ainda Especialista em Figurino e Carnaval pela Universidade Veiga de Almeida e graduando em Cenografia e Indumentária na Unirio