Descrição
A leitura é um diálogo. Situados na nossa circunstância histórica e pessoal, estabelecemos contato com um texto também situado. Projetamo-nos nele, ele nos modifica. Esse texto pode, por sua vez, fingir outra situação de diálogo, com outro texto, produzido em outra circunstância. É o caso de “O segredo do Bonzo”, do livro Papéis avulsos (1882), de Machado de Assis. O conto tem como subtítulo “Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”. O narrador-cronista data os acontecimentos relatados de 1552. Fernão Mendes Pinto viveu entre 1510 e 1583. Sua crônica histórica, Peregrinação, saiu pela primeira vez em 1614, em edição expurgada. O conto de Machado de Assis é uma paródia, “canto paralelo”, procedimento radical de leitura e de escrita: o parodista simula colocar-se na mesma situação do autor parodiado. No mesmo volume, Papéis avulsos, Machado de Assis já havia aplicado o recurso em “Na arca” (três capítulos inéditos do Gênesis). Reincide no procedimento, entre outros momentos, em 1893, em “O sermão do diabo” (Páginas recolhidas, 1899), a transcrição, afirma o narrador, de um papel velho, “um pedaço do evangelho do Diabo, um “sermão da montanha”, “à maneira de S. Mateus”. No texto paródico, a escrita reproduz não apenas “o que” escreveria o autor parodiado, mas “o como” ele escreveria, caso tivesse escrito. Finge suprimir a distância entre dois autores. Partilha com o seu leitor de 1882 a dificuldade do distanciamento em relação à crônica seiscentista. Leitores de 2008, construímos nosso dispositivo de decifração para atravessar todos esses filtros.